Café Bagdad

À conquista das palavras...

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Location: sintra, Portugal

I was born in Mozambique. I'm Portuguese, but my heart is half Portuguese, half African. I'm still thinking that one day we can change the world.

Friday, November 26, 2004

Pedro Sim - Pedro Não

Eu conheço um Pedro Sim, mas todos conhecemos um Pedro Não...

Estava o Pedro curvado, apanhando as ervas daninhas que teimam em invadir a minha amostra de jardim, quando senti curiosidade em conhecê-lo melhor.

Durante uma pausa para lanchar, pus-me à conversa com ele, sentados os dois na cozinha. O Pedro é guineense, tem mulher e três filhos na Guiné, mais um filho de 12 anos, que vive com ele. O Pedro tem 67 anos. O Pedro diz que a mulher tem de ficar lá, enquanto a sogra for viva, porque não se pode abandonar os velhos...

Imaginei a sua vida, a sua família. Sobretudo a sua dignidade – o Pedro tinha começado o jardim há três semanas, mas veio uma chuva abençoada. Abençoada, porque nos permitiu conhecer o Pedro.

Combinámos, então, nova sessão de jardim, para quando estivesse sol. O meu marido insistiu em pagar-lhe duas horas, mas o Pedro recusou, confiou em nós, era só o que faltava, levar dinheiro sem ter acabado o trabalho!...

Durante três semanas, não deu sinal de vida, não teve pressa de vir cobrar, sério, honesto, confiante.

Agora, ao fim do dia, acabado o trabalho, o Pedro não queria receber o dinheiro desse dia de chuva, achava que não tinha feito quase nada... Foi preciso insistir.

Ficámos chocados, a pensar ... o Pedro é um homem BOM. Aflitos só de pensar em como deve ser explorado...

O Pedro varre as ruas, luta pela sobrevivência de toda a família, trabalhando sábados e domingos em pequenos biscates. O Pedro não passa recibo verde. Para o Estado, o Pedro é um infractor. O Pedro foge ao fisco. Mas é o meu Pedro SIM.

Para mal dos nossos pecados, temos todos um Pedro NÃO. Aquele que não sai da televisão, tipo protagonista ... até veio num jornal o rendimento dele, ali, tudo certinho, próprio do cidadão cumpridor que apregoa ser. Está convencido que é importante, que manda... Esse mesmo – branco mais branco não há!

Pedro Não, podes ir embora, deixa lugar aos Pedros Sim que por aí andam...



A morte de Arafat - E o meu Pai Natal é Muçulmano...

A morte de Arafat – E o meu Pai Natal é Muçulmano...

Eu sei que o título parece ser polémico, mas não é.

Ninguém pode ficar indiferente à vida e à morte de Yasser Arafat. Ídolo para muitos, monstro para outros tantos, Arafat percorreu , tortuosamente, um caminho cheio de obstáculos, mas... estava na terra dele. Não fez uma guerra para ir ocupar a terra dos outros, apenas agarrou nas armas que conseguiu para lutar contra os ocupantes da sua própria terra. Lamentavelmente, exigimos que o mundo árabe se comporte como nós, quando os valores básicos por que nos regemos são opostos – o nosso amor à vida é tão grande como o culto deles pela morte - enquanto não percebermos isso, a guerra continuará.

Veremos, pois, se a sua sucessão não vai criar problemas no xadrez político internacional. A sede de poder, os lobbies, enfim, tudo irá ser orquestrado para que eles fiquem mal no quadro, certamente. Quanto pior , melhor - não é a máxima dos donos do mundo?

Arafat morreu antes do Natal, essa festa que o mundo árabe não ignora, ainda que não lhe diga respeito. Tenho uma amiga muçulmana, daquelas que reza cinco vezes por dia, que nunca deixa de mimar a minha família com presentes nesta quadra. Como o mundo seria mais bonito se todas as culturas se entrelaçassem desta maneira...

Há quase 26 anos, em Antibes, estava eu a celebrar o Natal com muita alegria, quando tocaram à campainha da minha porta, perto da meia-noite. Quando abri a porta, fiquei boquiaberta a olhar para um jovem árabe, sorridente, com as mãos atrás das costas – é incrível como uma pessoa que se sente e vive com determinados valores, apesar das suas convicções, não deixa de se sentir “ameaçada” quando a “diferença” lhe bate à porta ... odeio reconhecê-lo, mas sou suficientemente honesta para fazer “mea culpa”.

Disse-me que morava no prédio que fazia um “L” com o meu, e podia ver, através do vidro da sala, que dava para a varanda, a animação da nossa festa – só mulheres e crianças. Que tinha estado a apreciar a nossa alegria, as nossas danças com os mais pequeninos, e que, por isso, resolvera ir levar-nos uma garrafa de champanhe.

O medo e a desconfiança deram lugar a um desconforto indescritível – tinha medo de uma pessoa que tinha um gesto de uma simpatia inexcedível. Convidei-o a entrar, mas recusou, argumentando que tinha convidados em casa, para festejar o Natal, apesar de ser muçulmano. Só lá tinha ido par nos oferecer uma garrafa de champanhe, e desejar-nos um Bom Natal. Despediu-se à primeira badalada , já a abrir o elevador, levando um dedo aos lábios, e sussurrando “é meia-noite”.

Passado algum tempo, fomos à varanda gritar-lhe “Feliz Natal”, com os mais pequenos a atirar-lhe beijinhos. Por ironia, os dois miúdos mais velhos eram filhos de um alemão bastante “ariano”, que tinha combatido os árabes na Argélia. Ainda hoje me parece estranho tudo o que se passou naquela noite.

Dali para a frente, cada vez que ia à varanda e o via, gritava-lhe “Bonjour Papa Noel”. Nunca soube o seu nome. Contaram-me que era um árabe, filho de um milionário do petróleo que estava a estudar na Faculdade de Nice, conhecido pela sua simpatia e pelas festas constantes que oferecia. A casa dele estava sempre cheia.

Tenho remorsos de nunca lhe ter dito o meu nome. De não lhe ter perguntado o nome para lhe escrever pelo Natal. De não me ter despedido. Guardo a rolha da garrafa de champanhe, como uma prova de que o Pai Natal existe – sempre que o nosso coração quer.

Todos os anos, pelo Natal, conto esta história a alguém. O mais bizarro é que dois dias antes, tinha discutido com uns colegas a existência do Pai Natal. Todos diziam que não, apenas eu tinha insistido que sim, enfim, mais uma batalha perdida – já estou tão habituada ... quando encontro muita concordância, penso que estou errada... Depois das festas, pavoneei-me, na minha certeza de que tinha razão. Afinal, ganhara a discussão.

A morte de Arafat, faz-me reviver esta história sob outra perspectiva – o que será feito do meu Pai Natal? Andará a gastar o dinheiro em armas, empenhado na guerra do seu Povo? Não sei porquê, imagino-o mais a negociar diplomaticamente a Paz. Seja como for, para mim, será sempre o meu Pai Natal.










Thursday, November 11, 2004

A saia da Carolina

Como uma saia pode ser importante na vida de uma pessoa, de uma família, de uma sociedade!...

Esta manhã, ao pegar numa saia para me vestir, fiquei parada, a relembrar a história da Saia da Carolina.

Alcácer do Sal, 1855. Alta, morena quanto baste, olhos negros e profundos, Carolina parecia uma cigana igual às outras – analfabeta, casada, mãe de prole numerosa, submissa. Mas Carolina era diferente das outras – rebelde, sonhadora, idealizava um futuro diferente para os filhos. Longe dali, onde os seus meninos aprendessem a ler. Como ela teria gostado de aprender a perceber o que aquelas letras queriam dizer!... À noite, à luz da vela, agarrava nos pedaços de jornal que embrulhavam as mercearias, e punha-se a imaginar outras vidas, outras terras, outro mundo para os seus meninos...

O marido descarregava a sua violência com tanta frequência, que Carolina aprendeu a sofrer em silêncio, guardou as lágrimas, tentando sempre proteger os seus meninos da fúria paterna. Dezassete filhos teve, dezassete anos esperou, sem queixumes, sem mágoa aparente.

A costura era o seu devaneio, a sua saia de festa, o seu encanto, o seu refúgio, a sua confidente.

Mãos de fada, ia costurando, cosendo, remendando a sua saia festiva, durante o luto contínuo pelos filhos que ia perdendo. Nas horas de desespero, era vê-la agarrada à saia de festa. “Parva...”, pensava o marido – quem é que ia agarrar-se a uma saia daquela maneira? Coisa de mulher...bem, pelo menos ficava entretida, e sempre era uma maneira de não ter de lhe comprar outra, pensava com os seus botões, a caminho da taberna, sempre que o lucro de um bom negócio o permitia.

Dezassete anos foram passando, o marido crescia nos negócios, os dois últimos filhos vingaram, e estavam lindos, fortes, saudáveis. Tímida, amedrontada, sugeriu que era bom pô-los na mestra. Dois tabefes calaram-na, ele estava bem de vida sem essas coisas das letras, os filhos teriam de começar a fazer-se à vida, ponto final. Dissimulada, aparentou resignação, abraçando-se à saia, com um brilhozinho nos olhos, os sonhos povoando-lhe a mente...

Alcácer do Sal, 1872 – Carolina, pressurosa, preparava a mala e o farnel do marido, que ia estar duas semanas em viagem, com mais familiares, a negociar mercadorias para ganhar bom dinheiro. A tudo dizia que sim, ignorando ralhos e insultos. Quando a carroça do sogro chegou, foi à porta, ajudando a carregar as malas, despedindo-se de todos, como sempre. Ficou ali, especada, até a carroça desaparecer...

O dia parecia nunca mais acabar...Pela calada da noite, pegou nos filhos, com as melhores roupas vestidas, sapatos de dia festa, montou-os num burro, patas forradas para não fazer barulho, levando consigo, como único bem, a sua querida saia.

Aos filhos apenas explicou que iam fugir para Lisboa, aquela cidade linda de que tanto lhes falava, e que não queria que respondessem a ninguém que pelo caminho os interpelasse. Encantados com a aventura, os garotos obedeceram à mãe.

A viagem foi longa e cansativa. Carolina fez todo o trajecto a pé, burrito pela mão, evitando caminhos mais frequentados pela sua etnia. Dormiam em campos, escondidos, comendo do farnel que preparara com todo o empenho.

Salta, coração, salta, que Lisboa está já ali!.... Finalmente, estavam em Lisboa!... Carolina vendeu o burro, cortou a trança, foi a uma loja, comprou um chapéu, à senhora, imaginem, tão fina que ficava!... Uma mantilha bonita e uns sapatos abotinados, sempre deram outro aspecto. Mais uns toques nos miúdos, e aí vai ela para uma ourivesaria....

Da bainha da saia da Carolina, saiu uma libra de ouro, que foi vendida após negociação. Era esse o segredo da sua saia – durante dezassete anos, tirara dinheiro ao marido, sempre que este vinha embriagado. Juntava ao que economizava na sua gestão doméstica, e, como cigana que era, sempre que ia a feiras e mercados, ia comprando libras de ouro que cosia amorosamente na sua saia.

A saia da Carolina permitiu-lhe que alugasse uma casa, comprasse uns tarecos indispensáveis e... fosse a correr à procura de uma escola para inscrever os filhos. Era para isso que ela tinha enganado o marido, para que os seus filhos soubessem ler e escrever!... Estava realizado o seu sonho, os seus meninos, graças a essa saia mágica, que tanto encantou a minha infância, viriam a ser, mais tarde, cidadãos portugueses de pleno direito.

Talvez agora, minha querida filha, entendas porque te pusemos o nome de Carolina!

Café Bagdad

Nunca a Amizade foi tão bem abordada como no filme Café Bagdad, em que duas mulheres, de raças e culturas diferentes, aparentemente opostas, conseguem, aos poucos, criar e consolidar uma relação pura e fraterna, como sempre deve ser a Amizade.

Este filme é tão sensível e bonito, embora de muitos ainda desconhecido, que baptizei o meu blog de Café Bagdad - porque a Vida deve ser vivida e partilhada, respeitando e ultrapassando todas as diferenças.