Como uma saia pode ser importante na vida de uma pessoa, de uma família, de uma sociedade!...
Esta manhã, ao pegar numa saia para me vestir, fiquei parada, a relembrar a história da Saia da Carolina.
Alcácer do Sal, 1855. Alta, morena quanto baste, olhos negros e profundos, Carolina parecia uma cigana igual às outras – analfabeta, casada, mãe de prole numerosa, submissa. Mas Carolina era diferente das outras – rebelde, sonhadora, idealizava um futuro diferente para os filhos. Longe dali, onde os seus meninos aprendessem a ler. Como ela teria gostado de aprender a perceber o que aquelas letras queriam dizer!... À noite, à luz da vela, agarrava nos pedaços de jornal que embrulhavam as mercearias, e punha-se a imaginar outras vidas, outras terras, outro mundo para os seus meninos...
O marido descarregava a sua violência com tanta frequência, que Carolina aprendeu a sofrer em silêncio, guardou as lágrimas, tentando sempre proteger os seus meninos da fúria paterna. Dezassete filhos teve, dezassete anos esperou, sem queixumes, sem mágoa aparente.
A costura era o seu devaneio, a sua saia de festa, o seu encanto, o seu refúgio, a sua confidente.
Mãos de fada, ia costurando, cosendo, remendando a sua saia festiva, durante o luto contínuo pelos filhos que ia perdendo. Nas horas de desespero, era vê-la agarrada à saia de festa. “Parva...”, pensava o marido – quem é que ia agarrar-se a uma saia daquela maneira? Coisa de mulher...bem, pelo menos ficava entretida, e sempre era uma maneira de não ter de lhe comprar outra, pensava com os seus botões, a caminho da taberna, sempre que o lucro de um bom negócio o permitia.
Dezassete anos foram passando, o marido crescia nos negócios, os dois últimos filhos vingaram, e estavam lindos, fortes, saudáveis. Tímida, amedrontada, sugeriu que era bom pô-los na mestra. Dois tabefes calaram-na, ele estava bem de vida sem essas coisas das letras, os filhos teriam de começar a fazer-se à vida, ponto final. Dissimulada, aparentou resignação, abraçando-se à saia, com um brilhozinho nos olhos, os sonhos povoando-lhe a mente...
Alcácer do Sal, 1872 – Carolina, pressurosa, preparava a mala e o farnel do marido, que ia estar duas semanas em viagem, com mais familiares, a negociar mercadorias para ganhar bom dinheiro. A tudo dizia que sim, ignorando ralhos e insultos. Quando a carroça do sogro chegou, foi à porta, ajudando a carregar as malas, despedindo-se de todos, como sempre. Ficou ali, especada, até a carroça desaparecer...
O dia parecia nunca mais acabar...Pela calada da noite, pegou nos filhos, com as melhores roupas vestidas, sapatos de dia festa, montou-os num burro, patas forradas para não fazer barulho, levando consigo, como único bem, a sua querida saia.
Aos filhos apenas explicou que iam fugir para Lisboa, aquela cidade linda de que tanto lhes falava, e que não queria que respondessem a ninguém que pelo caminho os interpelasse. Encantados com a aventura, os garotos obedeceram à mãe.
A viagem foi longa e cansativa. Carolina fez todo o trajecto a pé, burrito pela mão, evitando caminhos mais frequentados pela sua etnia. Dormiam em campos, escondidos, comendo do farnel que preparara com todo o empenho.
Salta, coração, salta, que Lisboa está já ali!.... Finalmente, estavam em Lisboa!... Carolina vendeu o burro, cortou a trança, foi a uma loja, comprou um chapéu, à senhora, imaginem, tão fina que ficava!... Uma mantilha bonita e uns sapatos abotinados, sempre deram outro aspecto. Mais uns toques nos miúdos, e aí vai ela para uma ourivesaria....
Da bainha da saia da Carolina, saiu uma libra de ouro, que foi vendida após negociação. Era esse o segredo da sua saia – durante dezassete anos, tirara dinheiro ao marido, sempre que este vinha embriagado. Juntava ao que economizava na sua gestão doméstica, e, como cigana que era, sempre que ia a feiras e mercados, ia comprando libras de ouro que cosia amorosamente na sua saia.
A saia da Carolina permitiu-lhe que alugasse uma casa, comprasse uns tarecos indispensáveis e... fosse a correr à procura de uma escola para inscrever os filhos. Era para isso que ela tinha enganado o marido, para que os seus filhos soubessem ler e escrever!... Estava realizado o seu sonho, os seus meninos, graças a essa saia mágica, que tanto encantou a minha infância, viriam a ser, mais tarde, cidadãos portugueses de pleno direito.
Talvez agora, minha querida filha, entendas porque te pusemos o nome de Carolina!