Café Bagdad

À conquista das palavras...

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Location: sintra, Portugal

I was born in Mozambique. I'm Portuguese, but my heart is half Portuguese, half African. I'm still thinking that one day we can change the world.

Thursday, November 11, 2004

A saia da Carolina

Como uma saia pode ser importante na vida de uma pessoa, de uma família, de uma sociedade!...

Esta manhã, ao pegar numa saia para me vestir, fiquei parada, a relembrar a história da Saia da Carolina.

Alcácer do Sal, 1855. Alta, morena quanto baste, olhos negros e profundos, Carolina parecia uma cigana igual às outras – analfabeta, casada, mãe de prole numerosa, submissa. Mas Carolina era diferente das outras – rebelde, sonhadora, idealizava um futuro diferente para os filhos. Longe dali, onde os seus meninos aprendessem a ler. Como ela teria gostado de aprender a perceber o que aquelas letras queriam dizer!... À noite, à luz da vela, agarrava nos pedaços de jornal que embrulhavam as mercearias, e punha-se a imaginar outras vidas, outras terras, outro mundo para os seus meninos...

O marido descarregava a sua violência com tanta frequência, que Carolina aprendeu a sofrer em silêncio, guardou as lágrimas, tentando sempre proteger os seus meninos da fúria paterna. Dezassete filhos teve, dezassete anos esperou, sem queixumes, sem mágoa aparente.

A costura era o seu devaneio, a sua saia de festa, o seu encanto, o seu refúgio, a sua confidente.

Mãos de fada, ia costurando, cosendo, remendando a sua saia festiva, durante o luto contínuo pelos filhos que ia perdendo. Nas horas de desespero, era vê-la agarrada à saia de festa. “Parva...”, pensava o marido – quem é que ia agarrar-se a uma saia daquela maneira? Coisa de mulher...bem, pelo menos ficava entretida, e sempre era uma maneira de não ter de lhe comprar outra, pensava com os seus botões, a caminho da taberna, sempre que o lucro de um bom negócio o permitia.

Dezassete anos foram passando, o marido crescia nos negócios, os dois últimos filhos vingaram, e estavam lindos, fortes, saudáveis. Tímida, amedrontada, sugeriu que era bom pô-los na mestra. Dois tabefes calaram-na, ele estava bem de vida sem essas coisas das letras, os filhos teriam de começar a fazer-se à vida, ponto final. Dissimulada, aparentou resignação, abraçando-se à saia, com um brilhozinho nos olhos, os sonhos povoando-lhe a mente...

Alcácer do Sal, 1872 – Carolina, pressurosa, preparava a mala e o farnel do marido, que ia estar duas semanas em viagem, com mais familiares, a negociar mercadorias para ganhar bom dinheiro. A tudo dizia que sim, ignorando ralhos e insultos. Quando a carroça do sogro chegou, foi à porta, ajudando a carregar as malas, despedindo-se de todos, como sempre. Ficou ali, especada, até a carroça desaparecer...

O dia parecia nunca mais acabar...Pela calada da noite, pegou nos filhos, com as melhores roupas vestidas, sapatos de dia festa, montou-os num burro, patas forradas para não fazer barulho, levando consigo, como único bem, a sua querida saia.

Aos filhos apenas explicou que iam fugir para Lisboa, aquela cidade linda de que tanto lhes falava, e que não queria que respondessem a ninguém que pelo caminho os interpelasse. Encantados com a aventura, os garotos obedeceram à mãe.

A viagem foi longa e cansativa. Carolina fez todo o trajecto a pé, burrito pela mão, evitando caminhos mais frequentados pela sua etnia. Dormiam em campos, escondidos, comendo do farnel que preparara com todo o empenho.

Salta, coração, salta, que Lisboa está já ali!.... Finalmente, estavam em Lisboa!... Carolina vendeu o burro, cortou a trança, foi a uma loja, comprou um chapéu, à senhora, imaginem, tão fina que ficava!... Uma mantilha bonita e uns sapatos abotinados, sempre deram outro aspecto. Mais uns toques nos miúdos, e aí vai ela para uma ourivesaria....

Da bainha da saia da Carolina, saiu uma libra de ouro, que foi vendida após negociação. Era esse o segredo da sua saia – durante dezassete anos, tirara dinheiro ao marido, sempre que este vinha embriagado. Juntava ao que economizava na sua gestão doméstica, e, como cigana que era, sempre que ia a feiras e mercados, ia comprando libras de ouro que cosia amorosamente na sua saia.

A saia da Carolina permitiu-lhe que alugasse uma casa, comprasse uns tarecos indispensáveis e... fosse a correr à procura de uma escola para inscrever os filhos. Era para isso que ela tinha enganado o marido, para que os seus filhos soubessem ler e escrever!... Estava realizado o seu sonho, os seus meninos, graças a essa saia mágica, que tanto encantou a minha infância, viriam a ser, mais tarde, cidadãos portugueses de pleno direito.

Talvez agora, minha querida filha, entendas porque te pusemos o nome de Carolina!

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